quarta-feira, 3 de maio de 2017

A fada

  Parece mais um dia comum. Meus pais já voaram para o trabalho e, da minha cama, posso ouvir minha irmã cantarolar uma melodia alegre, como faz todas as manhãs, enquanto prepara a comida. Coloco os pés no chão, com o pensamento de que, parece, mas hoje não é um dia comum. É 25 de dezembro. Meu aniversário. E o Natal, para os humanos.
  As fadas não comemoram o Natal, pois nossas crenças são outras. Para nós, há apenas a Criadora e a Traidora. Não temos feriados pelos feitos da Criadora. Apenas pedimos sua benção e proteção (“e que não tenhamos os pensamentos de sua filha, Abgail, a Traidora”.) Também não pagamos pelos erros de Abgail, filha de nossa própria Criadora, que se apaixonou por um humano e deixou nosso reino e sua imortalidade para viver como um deles.
  Apesar da maioria de nós não suportar os humanos (“eles não voam! Não possuem poderes! Tiram férias! Não são focados! Como podem viver assim?”), eu os acho intrigantes. Temos nossas festas e nossas alegrias e, acredite em mim, elas são incríveis, mas meu povo não é tão sentimental. Nossas emoções não transparecem tanto quanto a deles. Gosto de observá-los. Como eles passam de felizes, para raivosos, para melancólicos em apenas um minuto! Fascinante!
  Coloco meu vestido de trabalho, uma peça lisa e laranja, com o comprimento até o joelho e alças grossas, que se entrelaçam nas minhas costas cobertas. Sua cor se contrapõe com as minhas asas, de um branco tão vibrante que atrai todos por perto. Eu sou o que consideram bonito, com meus cabelos ruivos, como o da Criadora (“Uma menina abençoada”), e curtos, diferentemente do dela, com uma irritante franja em minha testa (arrependo-me profundamente desse corte).
  Adentro na sala e sorrio para minha irmã.
  - Bom dia, minha flor. Ansiosa para hoje? – Pergunta ela, colocando um pão tostado na minha frente.
  Esqueci de comentar que hoje faço 18 e, por isso, poderei fazer minha primeira visita oficial ao mundo dos humanos? É claro que meu povo não sabe que já os visitei antes.
  - Um pouco nervosa, na verdade. – Minto; essa é a resposta que esperam de mim.
  Minha irmã me encara com seus olhos castanhos. Eles são bem intimidantes.
  - Não precisa de nervosismo. Humanos são completamente estranhos. Não irá gostar deles, choram por tudo. E como mentem e bebem! Parecem uns porcos. – Seu rosto se contorce em uma careta de nojo, enfeando minha irmã. Ela não possui sardas como eu e é muito magra. Seu cabelo é de um tom mais escuro e já está arrumado em seu perfeito coque.
  Ela alisa seu vestido azul e pega meu prato, ainda que eu não tenha acabado:
  - Está pronta? Te deixarei no Lik e irei para o meu trabalho.
  Hoje eu não trabalho. Tenho que me encaminhar até o Lik, um moderno prédio espelhado onde me encontrarei com o prefeito e mais três fadas e poderemos embarcar para a Terra em uma nave esquisita e pequena. Se fôssemos simplesmente voando, explodiríamos assim que chegássemos no espaço, me disseram. Não serei eu a duvidar.
  Minha irmã trabalha nas plantações, enquanto eu trabalho na fábrica têxtil, por isso nossas cores são diferentes. Somos designadas a nossas tarefas quando pequenas, assim que temos capacidade de demonstrar nossos dons. Mamãe é uma cantora maravilhosa e papai um excelente médico. Não recebemos salário; recompensas só aumentam a cobiça e isso é coisa de humanos. Fadas são gentis, amáveis e livres de desejos maliciosos. Ou seríamos: alguns de nós se renderam e viraram humanos, como a Traidora, e é assim que são chamados também. Se apaixonam pelo poder, pela fama, ou até mesmo por um deles. Os últimos não são tão desprezados. Valorizamos o amor acima de tudo, mas e o amor pela sua família? Pelos amigos? Não podemos deixá-los para trás.
  Saímos de nossa casinha de madeira, idêntica a todas as outras da cidade, apenas diferenciada pela cor do telhado. Nossas telhas formavam um V de cabeça para baixo púrpura, como as asas da minha irmã, só trocando a posição da letra. Ela deposita a mão direita nas minhas costas, entre minhas asas, e andamos lentamente (culpa desses saltos, ainda não me acostumei com eles. Sapatilhas são mil vezes melhores) nesse dia claro, com o céu límpido e o sol brincando em nossas peles.
  A caminhada não é longa, por isso não voamos. Voar é exaustivo e requer muito esforço. Assim que chegamos na porta do Lik, minha irmã me abraça.
  - Boa sorte e tenha um feliz aniversário. Verá como os humanos são chatos.
  Rimos uma para a outra e a observo levantar voo e sumir no horizonte, sem olhar para trás. Respiro fundo e entro no prédio.
  - Bom dia, docinho. O que deseja? – A voz suave pertence a uma mulher de pele negra e cabelos encaracolados, presos em outro coque arrumado. Sua maquiagem está impecável. O que a estraga são seus dentes grandes e tortos, que parecem não caber em sua boa. Por Cleo, nossa Criadora, pensar em beleza e feiura é atitude de humanos!
  -Hã, faço 18 hoje. – respondo, completamente fora do padrão. A frase perfeita, ensaiada tantas vezes com mamãe deveria ser “Bom dia, senhorita. Estou aqui para encontrar o senhor prefeito Edgar Hoolug e partir para a viagem à Terra.” Então informá-la meu nome completo e minha data de nascimento, juntamente com meu endereço e nome dos meus pais. Pelo visto, já comecei falhando.
  Ela ergue as sobrancelhas, claramente percebendo meu erro. – Certo. Aproxime-se para organizarmos seus dados.
  Após concluída a parte maçante, que consistia em uma densa leitura de regras e explicações (creio que tudo seja para poupar o prefeito desse trabalho), a moça me indicou o caminho. Segui o longo corredor, porém, ao invés de virar à direita, fui para a esquerda. Não por engano.
  - Que demora. – Disse Thomas, sentado logo mais à frente, em seu posto de segurança.
  - Você não deveria, sei lá, estar com o prefeito?
  - Hoje estou encarregado de levar a donzela aos aposentos do senhor Hoolug para que ela possa conhecer os humanos pela primeiríssima vez. – Como se sua voz já não estivesse repleta de sarcasmo, ele me lança seu sorriso mais sacana, aquele que deixa minhas pernas bambas.
  Thomas é meu namorado, futuro noivo, já que em nosso reino os casamentos ocorrem cedo. O nosso amor é antigo e recheado de zombarias um com o outro. Os mais velhos nos adoram, pois gostamos de mostrar o amor aos outros e geralmente andamos de mão dadas na rua. Também temos nossos segredos, como todo bom casal.
  Thomas trabalha no Lik há quatro anos, desde que completou 16, sendo indicado pelo pai, que também tem um emprego aqui, como secretário do prefeito. Por isso, ele tem acesso a chaves e locais que ninguém tem. Como a sala onde ficam as naves capazes de nos conduzir a Terra. O manuseio delas não é difícil e então, de vez em quando, nós dois visitamos os humanos, sem que ninguém saiba, e passamos um dia romântico em outro planeta. Aliado a nossa curiosidade por esses seres, há também o fato de compartilharmos um segredo só nosso e a adrenalina de fazer algo errado e não sermos pegos.
  Beijo-o para fazê-lo calar. E vamos fingir que o beijei apenas por isso, e não porque seus lábios finos me atraem. Huuum, gosto de canela.
  Sorrio assim que nos separamos. Thomas tem olhos cinzas e cabelo loiro, bem cortado.
  - Bem, será minha primeira ida à Terra sem você. – Sussurro e o beijo de novo. Ele ajeita meu coque e dá uma risadinha. Eu nunca soube fazer um direito. Vou embora logo depois.
  Olho para trás e o vejo parado, imponente e alto, com seus músculos e toda a sua força adquirida no treinamento para segurança. Ele pisca para mim e eu retribuo mandando um beijo.
  Sigo em frente e entro onde deveria ter ido primeiro. Entretanto, não podia passar o dia fora sem ver Thomas.
  Abro a porta sem bater e vejo que todos os três outros parceiros de minha viagem já estão acomodados em suas poltronas, uma ao lado da outra, com os cintos devidamente colocados. O prefeito, em pé, vira-se para mim e abre um enorme sorriso.
  - Querida, estávamos a sua espera. Entre, entre. Presumo que srta.Linfg já tenha lhe explicado tudo.
  Dois homens, ao lado do prefeito, me conduzem até a cadeira do canto, a única vazia, e colocam o meu cinto. Eles descem do palanque e fecham a porta. A nave é apenas isso. Quatro assentos, postos ao lado do outro e apertados num pequeno corredor, com uma porta horizontal de vidro. Vejo o prefeito sorrindo e acenando para nosso transporte minúsculo e os guardas de branco entrarem na parte da frente, onde pilotarão.
  A viagem é curta, apenas 20 minutos, e super desconfortável. Sinto minhas asas presas e foco em olhar a dos meus companheiros, para me distrair durante o percurso. Nenhuma palavra é trocada por nós; todos parecem bastante tensos.
A do garoto ao meu lado é verde da cor do mar e tento me deter aos detalhes. A asa dele possui umas linhas em forma de círculos, bem delicada. A da garota logo depois é mais chamativa. Eu a reconheço só pelas suas cores. É Louise, minha vizinha, e ela nunca passa despercebida, já que possui sete cores em suas costas. Os tons do arco-íris, num estilo dégradée. Nosso último companheiro tem um tipo diferente de asa. É vermelha, contudo, há bolotas pretas espalhadas por ela, como uma joaninha. Encaro-a por tanto tempo que o menino fica desconfortável e desvio o olhar. O trajeto é tão rápido que, infelizmente, não dá para ver nada do universo passando por nós. Por isso, fecho os olhos até o percurso acabar.
  A nave dá um tranco e nossa porta se abre automaticamente e os cintos sobem ao mesmo tempo. Sinto-me livre. Sou a primeira a descer da nave. Está quente, e no nosso reino nunca faz calor, nem frio. A temperatura é sempre agradável. Gosto de ter essa sensação sob minha pele. Meus companheiros estão completamente assustados, enquanto eu estou feliz, como se reencontrasse uma antiga amiga. Tão feliz que flutuo a alguns centímetros do chão. Percebo que minhas asas estão batendo sozinhas, levemente, de tanta alegria. Voar exige concentração na dominação da felicidade. Respiro fundo, para não exagerar e acabar perdendo o controle e voando para perto dos aviões.
  Meus companheiros finalmente perdem o medo e se aproximam devagar. Estamos em um penhasco, olhando os montes e os vales lá embaixo. As pessoas e seus carros parecem formiguinhas daqui de cima. Posso ler o pensamento da maioria, sentir as emoções, como meu poder me permite. Sento-me perto de uma árvore nesse enorme tapete verde em que piso e observo as pessoas, minhas asas querendo bater de tanta empolgação.
  Uma maçã cai perto de mim e a agarro. Está deliciosa. Tenho o dia todo pela frente. O sol está no alto. Daqui a pouco, quando todos estiverem mais calmos, desceremos e conviveremos com os humanos mais de perto, nossas asas (assim como nossa nave) camufladas.
  Essa experiência serviria para mostrar as fadas mais novas o quão abominável é o mundo dos humanos. Caótico. Na maior parte das vezes, funciona, minha irmã mesmo acha isso depois que passou por aqui. Mas eu não. Eu adoro.

  Feliz aniversário, digo para mim mesma. E feliz natal.