sexta-feira, 29 de julho de 2016

Música de outono

      O som proveniente do piano espalhava-se pelo chão de madeira e pelas paredes de vidro, de onde podia se avistar a floresta com suas folhas alaranjadas delicadamente desprendendo-se das árvores e formando um tapete no chão.
      A música era tão clara que era palpável. Praticamente podia se ver as notas musicais flutuando pelo ar outonal, junto com a poeira e a luminosidade solar. A garota responsável por tão belo som estava completamente imersa na mágica atmosfera musical, seus pensamentos voltados à pessoa que mais gostava de ouvi-la.
      A saudade que sentia dele era imensa e apertava o peito de maneira dolorosa. Ao olhar para o lado, com a visão da floresta, lembrava dele ali, em pé, a observá-la, com seu meigo sorriso ansioso e seus cabelos loiros bagunçados pelo vento. Lembrava dos dois bailando por aquele imenso salão ao som de uma música silenciosa. Dos olhos fechados dele ao sentir a música que ela tocava, sentado no sofá de veludo ao lado do piano.
      As memórias voltavam num flash, as lágrimas arriscavam sair dos seus olhos.
      Quando ele adentrou aquela mesma sala com a mais dolorosa das notícias. Todas as noites solitárias que ela passou com a cara inchada de choro pensando se ele havia sobrevivido a mais uma noite naquela guerra selvagem. Cada vez que aparecia uma carta dele, com suas juras de amor. A ansiedade evidente por sua volta e o alívio quando os temíveis guardas não paravam em sua porta e passavam direto. Ah, todas as emoções que aquele salão presenciou daquela pobre menina de cabelos da cor das folhas do outono. Todas as emoções refletidas nas peças do piano.
           Fazia oito meses que ela não tocava essa música, a música deles. Fazia oito meses que ele havia partido. Mas hoje, hoje ela precisava tocar. Por ele. Por ela. Ou ela iria enlouquecer.

           Um soluço explodiu de seu peito e não foi possível mais conter as lágrimas, interrompendo a bela melodia abruptamente. Agora o único som presente na sala só poderia ser produzido por alguém que perdeu o verdadeiro amor e sabe que nunca irá vê-lo novamente.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Desastres

  Desastres. Milhares de desastres podem ocorrer a cada segundo do dia.
  Eu poderia ser atingida por um raio ou por um meteoro. Podia rolar da escada e bater a cabeça. Ou sofrer um assalto. Quem sabe até ser explodida por um ataque terrorista. O carro onde eu estiver pode bater ou descer ribanceira abaixo.
  Há diversos tipos de desastres que estamos sujeitos por simplesmente estarmos respirando e podem acontecer a qualquer segundo, quando menos esperarmos.

   Mas o pior de todos os desastres seria se você me deixasse.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Tulipa

    Eu tive uma tulipa uma vez. E ela era linda. Ficava na minha janela e eu sempre a encontrava observando a minha flor.
     Ela adorava tulipas, isso era verdade. Principalmente a minha, que era viva e sempre charmosa.
     Chegou o tão terrível dia. Minha tulipa murchou como os olhos de minha amada. O sol parecia não iluminar a casa da mesma maneira, tudo estava com menos brilho e mais cinzento, apenas com o desaparecimento delas.
      Murchou. Adoeceu. Tentou viver. Não adiantou: morreu.

      Da janela para o lixo. Olhando para aquele canto da sala, ainda sinto falta. Da tulipa e da minha amada. E do jeito que o sol brilhava pela casa, encantado com a beleza delas.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Última noite

  Mary desceu as escadas indignada, o som de seu salto alto ecoando pelo jardim estridentemente. Seu empresário, John Ross tentou segurá-la pelo braço pálido, mas a atriz se esquivou e tentou se aquecer com seu casaco de pele branco, jogado no ombro.
- Miss Mary, por favor, volte para dentro. Está frio e uma chuva se aproxima.
  Era comum a estrela dar ataques e descer as escadas correndo em direção à rua ladeada por mansões. Não era a primeira vez. John suspirou alto, já estava cansado de lidar com novas atrizes que deixavam a fama subir à cabeça e achavam que podiam tudo. E, por enquanto, podiam, pois eram jovens e belas, mas não talentosas. Elas iriam envelhecer e então seriam esquecidas pela mídia e por Hollywood, abandonadas no fundo do poço, sem nada. Mas agora, eram ricas e valorizadas, e Mary era uma delas. A loira sabia de seu sucesso e sabia que John estava faturando muito com seus filmes e ia mimá-la, fazendo todas as suas vontades. Ela podia ser fútil, mas era esperta.
- Ross, já disse que só volto quando tiver meus... - então Mary parou de falar e deixou os braços caírem ao lado do corpo, olhando espanta para uma figura minúscula encolhida no muro de pedra, perto do portão.
  Era uma garotinha, com longos cabelos pretos cacheados e volumosos, que contrastavam com a brancura de sua pele. Ela tremia naquela noite fria com peças de roupa tão finas e seus lábios tinham perdido a cor. Ela levantou a cabeça e olhou diretamente para Mary, com o espanto reluzindo em sua face.
  Mary apiedou-se da pobre menina e por um momento esqueceu-se da raiva que sentia e também da dúvida - como uma menina conseguiu burlar a segurança?
  Ajoelhou-se ao lado da pequena e perguntou-lhe qual era seu nome, percebendo o quão gelada a pele da magra garotinha estava ao tocá-la. Retirou rapidamente a mão do braço da menina, sentindo uma sensação estranha passar por seu corpo, algo como... pavor. Mas logo fez questão de ignorar essa sensação e se concentrar na criaturinha a sua frente.
- Suzanna, Miss.
- Ah, pobrezinha, você está tão gelada! E aqui está tão frio! Vamos, entre conosco e terá um belo banho quente e farta comida. Também deixarei você dormir tranquilamente em um dos quartos, numa deliciosa cama com uma lareira para te esquentar.
- Srta. Mary, pense racionalmente. Não podemos colocar essa criança dentro de casa. Você nem sabe quem ela é, de onde veio! Ela pode muito bem ser uma ladra!
- Ross, menos! Ela é a apenas uma criança, tenha piedade! - Replicou Mary. - A casa é minha e eu digo que ela entra. Acabou. - Dirigindo-se delicadamente para Suzanna. - Vamos, querida, venha comigo.
  A menina foi obedientemente. Recebeu todas as regalias possíveis. John estava intrigado com a garota, como ela havia conseguido chegar até ali, mas, por ora, Mary havia esquecido do desentendimento e isso era bom. Resolveu então deixar as duas em paz e retirou-se para seu quarto.
  Suzanna estava confortavelmente instalada em uma enorme cama de casal, num quarto maior ainda. Olhando para as chamas da lareira, ela ainda sentia sede. Havia conseguido entrar na casa daquela moça bonita de olhos azuis, típica dos filmes americanos, com aquele corte de cabelo dos anos 20. Mas ainda não havia alcançado seu objetivo. Levantou-se então e sorrateiramente procurou pelo quarto da atriz.                              
  Mary colocou sua camisola branca e deitou-se embaixo das cobertas para se aquecer, esquecendo completamente de fechar as cortinas. Por isso, o quarto ficava claro quando os relâmpagos apareciam no céu e assim pôde ver quando a pequena Suzanna abriu a porta lentamente. Estava chovendo violentamente do lado de fora, com trovões extremamente barulhentos. Um raio iluminou o rosto pálido da menina.
- Entre, minha criança. O que houve?
- Desculpe incomodá-la, Miss. Mas eu estou com medo. Posso me deitar com você?        
  Mary sorriu, vendo a menina tremer com o barulho de um trovão.
- Venha, pequena. Deite-se aqui.   Suzanna correu até a cama e deitou-se ao lado de Charlotte, que começou a fazer carinho em seus cabelos.                           
  Raios iluminavam o quarto periodicamente. Aquela sensação estranha estava dominando Mary novamente, cada vez mais forte, apertando seu coração. Suzanna podia sentir seu medo, os batimentos da atriz se acelerando.                               
  Por um tempo, estavam no escuro, um pouco afastadas, olhando uma para a outra. Assim que houve outro relâmpago, Mary percebeu que Suzanna havia se aproximado.      
   Escuro novamente. Quando clareou, Suzanna estava mais perto e com um sorriso diabólico no rosto. Mary se encontrava num pavor total, tentando se desenroscar dos cobertores quando sentiu o toque frio das mãos da menina em seus pescoço, a atriz esperando por outro clarão. Quando este veio, percebeu que Suzanna estava colada ao seu corpo agora e não tinha mais como se afastar. Tentou gritar, mas sua voz ficou presa na garganta.
- Não tenha medo, Miss. - sussurrou Suzanna.                      

E então veio um relâmpago e viu Suzanna abrir a boca, com dentes tão afiados e sentiu os dentes da garota cravarem-se em seu pescoço. Esperou por outro clarão, mas tudo havia se tornado escuro. Para sempre.