quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Mudança

    A garota olhou para a sala vazia. Sem móveis, sem cor, sem vida, sem sentimento. Depositou as malas no chão e suspirou. Foi um suspiro baixo, mas ecoou por todo o cômodo. A porta estava aberta e a chave se encontrava na fechadura de fora. O fato de ser tudo novo e seu, só seu, assustava-a.
    Mas não era só porque era seu e novo. Não era só uma mudança de residência, era uma mudança de vida, drástica. Significava o fim da mordomia, o fim de sua adolescência, um olá para a complicada vida adulta. Por mais que mamãe dissesse: “Estaremos do seu lado, não se preocupe”, continuava aterrorizante. Agora ela teria que se preocupar com prazos de conta, arrumação da casa, etc. etc. Falar sobre gás, encanamentos, impostos... Coisas que ela não tem a mínima noção.
    O envelhecimento. Não é mais uma criança. Agora ela está jogada no mundo. É ela por si própria. O mundo estará pronto para engoli-la se ela der apenas um passo errado. Ela não se sente pronta.

    Porém, tem que estar. Por isso, engole o choro, vai até a porta e a tranca. E começa o longo processo de mudança, porque a vida continua, a Terra continua fazendo sua rotação e translação, os ponteiros do relógio continuam girando, o tempo não para, e você precisa seguir bem de perto, para não ficar para trás.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Tragédia

  Por que toda história precisa terminar em tragédia? Por que você, leitor, está lendo isso mesmo sabendo que não terá um final feliz? Gosta de sofrer, imagino?
  Essa é mais uma história de amor. De amor ingênuo, não correspondido. De corações quebrados e partidos e despedaçados. É mais uma história sobre uma garota e suas ilusões. Ilusão de um garoto perfeito, ilusão que o garoto babaca vai se transformar num príncipe.
  Um spoiler: ele não vai. Eles nunca se tornam. Quer uma dica? Se você quer mudar a pessoa, você não a ama de verdade. Você só ama o que imagina que pode torná-la, o que você quer que ela seja.
  Não digo que não existam garotos bons, que amam de verdade. Eles existem sim. Mas é uma pena que nossa protagonista de apenas 16 anos nunca teve a chance de esbarrar com um desses. E, infelizmente, nunca vai ter.
  Era uma sexta, caro leitor. Uma noite de calor insuportável que só o Rio de Janeiro proporciona. Se você nunca visitou essa cidade no solzão de 50 graus, não sabe do que eu falo. Sorte sua. Nossa pobre menina está se arrumando para apenas mais uma social. Não, não apenas mais uma, sua primeira. E, se desse sorte, a que ela conseguiria beijar o garoto de sua sala que sempre dá mole para ela (e para o resto do colégio, mas o amor é cego, não é mesmo?). Ela coloca um short justo, blusa decotada, batom vermelho. Se sente maravilhosa. Sai do seu prédio, dando um breve tchau para seus pais. Se ela soubesse o que ia acontecer, teria voltado e dado um abraço demorado em sua família. Melhor, teria voltado. Ponto. Tudo seria diferente se ela tivesse voltado e desistido da festa. Mas a vida é cruel, claro que ela não voltou. Encontra suas amigas lá embaixo. Juntas, são o trio de excluídas no colégio. Estudiosas, quietas e tímidas, sentam nas primeiras carteiras, são as queridinhas dos professores e não conversam (muito) durante as aulas. Não são excluídas, na verdade, se excluem, e quando querem. Mas vamos colocar os pingos nos is. Nossa protagonista é a Amanda, uma menina baixinha e com bastante curvas que pinta seu cabelo de ruivo e fica muito bonita usando seu óculos de grau. Larissa é extremamente alta e reta, e também chama atenção pelos olhos verdes. Já Manuela usa aparelho, tem o cabelo extremamente liso e preto como uma índia e adora sua franjinha. As três caminham pela rua deserta, sem saberem o que as espera pela frente.
  Ainda do lado de fora, ouvem a música alta e observam quantas pessoas estão dentro da casa. Manu, a mais tímida e a única que foi de calça, parece assustada. Lari sorri, curtindo a música e já ensaiando uns passos. Se bem que, durante a festa, ela mal dança e se ocupa enfiando a língua na boca de um garoto da metade do seu tamanho. Mas não vou negar que ele é um fofo. Não disse que existem meninos românticos?
  As três meninas ficam juntas na festa por um tempo, evitando bebidas ou qualquer coisa suspeita que passe. Mas Larissa logo se separa do grupo em busca de seu par e por mais que não queria deixar Manu sozinha, Amanda não resiste ao impulso de estar perto de quem ela acha que é o amor da vida dela. Coitada. Então, largando a amiga para trás, nossa protagonista parte em procura do seu príncipe babaca.
  Ele está visivelmente bêbado quando ela o encontra. Visivelmente bêbado para todos, menos para inocente Amanda. Suas cantadas são péssimas, mas ela ri de todas. Também não consegue parar de encarar o tanquinho dele, porque é óbvio que ele já está sem camisa, esquecendo de olhar as pessoas rindo ao seu redor.
  Era uma aposta, caro leitor. O babaca tinha apostado com seus amigos babacas que conseguia pegar não uma, mas as três meninas. E começou pela mais fácil. A romântica incorrigível que lia Nicholas Sparks. Então você já consegue imaginar que no meio da festa os dois já estavam se beijando. E para o final da festa, ele queria partir para outra. Não sem antes fazer juras de amor e dizer que ela era a única. Mas foi mal ela virar as costas e ir pegar uma bebida para ele já estar com alguém que não era ela.
  A cena passa devagar agora e você consegue ver o momento que o copo escorrega da mão da Amanda e lentamente esparrama refringente por todo o chão. Você também vê a boca da menina se abrir em choque e seus olhos se encherem de lágrimas.
  Mas isso não é tudo, caro leitor. Ele corre atrás dela e agora estão no quintal da casa. Pede desculpa, diz que tudo foi um mal-entendido. Ela quer acreditar, quer mesmo, mas o vidro se partiu, a ilusão acabou. Ele a agarra, a beija a força. Toca a força. Ela tenta se desvencilhar, mas ele é mais forte e está em cima dela. Ela tenta gritar por socorro, mas a música está alta, as pessoas estão bêbadas e ninguém a escuta. E tudo que ela consegue fazer é chorar. Ela só consegue chorar enquanto aquele cara invade sua privacidade, enquanto toda a realidade a atinge com força. Ele não é um príncipe, ele é um monstro.
  Ela é largada sozinha quando ele se sente satisfeito. Sozinha, humilhada e envergonhada. Ela se levanta e anda para longe daquilo tudo. Longe dele, da música, das pessoas. Longe, longe, longe. Cambaleando mais do que andando, nem pensa em avisar as amigas, que estão à sua procura, preocupadas. De repente, não parece mais tão quente. Na verdade, parece que está muito frio e ela não consegue parar de tremer. A raiva consome cada molécula do seu corpo. Raiva dele, raiva das amigas, raiva de si própria. A vida não parece mais tão fácil e ela percebe que nunca mais será a mesma. Ela foi violada e não consegue suportar esse fato. Não há ninguém para conversar, para desabafar, para chorar. Ela está sozinha, passou a noite toda sozinha e desprotegida.
  O mundo é cruel demais para os românticos de alma sensível. A vida sempre destrói seus sonhos e esperanças da pior maneira possível. E tudo dói com muito mais intensidade. A dor que ela sentia parecia pior que a morte. A dor que ela sentiria pelo resto da vida, e a decepção, e a humilhação, tudo junto parecia pior que a morte. Seu peito estava apertado, encolhido e não tinha ar nos seus pulmões. Ela mal podia enxergar devido às lágrimas. O mundo parecia não ter solução. A não ser uma.
  O carro vinha em grande velocidade. Sim, ele era a solução. Seria rápido, indolor e tudo estaria acabado. A dor teria acabado. A dor acabou.

  Não disse que terminava em tragédia, leitor? É o que chama atenção das pessoas, não é mesmo? Veja, todos reclamam do final de Titanic e o filme é uma das maiores bilheterias da humanidade. Mas você quis ler até aqui e imagino que não esteja satisfeito como acabou, por eu ter matado a menina. Só que não fui eu que matei, caro amigo. Histórias assim são reais e isso que dói mais.