quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Amores líquidos

  - Não fique tão decepcionada, meu bem. - disse meu amigo ao ver meu estado após levar um pé na bunda - Infelizmente as pessoas amam assim no século XXI, uma hora estão se declarando para você e só basta o tempo de ver um vídeo de cachorrinho no facebook para você estar solteira de novo. Já ouviu falar em amor líquido? As pessoa tem tanta pressa de tudo que até o amor precisa durar pouco, ser rápido. É aí que elas se enganam. O amor, o verdadeiro amor, não tem pressa, não tem hora, não termina assim com uma mensagem de whatsapp. Não fique ansiosa para encontrar o seu, não deixe que as fotos de casais nos instagram te deprimam, querendo ter um romance daqueles, talvez seja apenas falso, apenas para fingir estar feliz ao lado da pessoa. Sabe por que, Roxy? Os amores hoje em dia acabam na segunda batida do coração. Não se assuste, é assim. Não deixe essa pressa, de começar e acabar, te afligir. As Parcas já decidiram nosso destino, deixe elas tomarem seu tempo, elas são mais antigas que os deuses gregos, possuem todo o tempo do mundo. O amor pode bater a sua porta amanhã, daqui a 5 ou 50 anos. Não importa. Ele virá.

  Assenti e o abracei, feliz por ter contato pele-com-pele em um momento que quase todos os consolos são feitos por uma tela de celular.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Século XXI

   Família tradicional brasileira. Um casal hétero, dois filhos, um cachorro, a(s) amante(s). Apartamento na zona sul do Rio. O marido chega a casa na hora do Jornal Nacional, não olha na cara da esposa, pede apenas a janta. Tira os sapatos, a gravata. Assiste a tv. Os filhos no quarto, fingindo fazer o dever de casa enquanto mexem no tablet. Os pais não se preocupam em perguntar sobre o dia deles mesmo, como vão saber em que matérias eles possuem dúvidas? O marido diz que passou um dia atarefado no trabalho. Muita papelada, muita reunião. Na verdade, encontrou a amante durante o almoço, naquele motel de quinta no centro. Depois do trabalho passou meia horinha com a outra antes de ir para casa. O perfume dela ainda estava delicadamente impregnado em seu terno, sua mulher apenas fingia que não via. Dois ditados resumem a vida de muitas mulheres casadas: "o que os olhos não veem, o coração não sente"/ "a ignorância é uma benção". É melhor não mencionar, é mais cômodo ficar junto. Ora, há toda a complicação do divórcio, toda a burocracia e o estresse. Coitada das crianças. A situação financeira vai piorar. Não, não, melhor continuar tudo como está. Manter essa linda família e postar várias fotos nas redes sociais das viagens para a Disney. Esse é o Brasil que querem manter.  

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Disfarce

   Era uma vez uma bela mulher. Todos a adoravam, pois sua beleza não era apenas externa: ela tinha um brilho mágico. Por onde ela passava, ela fazia amigos, encantando a todos com suas risadas e sua alegria. Mas toda essa felicidade era uma casca. Por dentro havia uma mulher infeliz que usava seu sorriso para esconder a amargura. E toda a tristeza de sua vida provinha de uma pessoa: seu marido, que a humilhava, xingando-a de gorda, grudenta, sebosa, manhosa, irresponsável, estúpida e outros adjetivos deploráveis. Humilhava-a em frente aos amigos e parentes, acrescentando palavrões e rindo como se fosse tudo uma piada. Aquelas palavras feriam, mas nossa heroína disfarçava bem. Brincava, se divertia, mas tudo guardava. Cada palavra era uma facada no coração. Quem a via passar na rua não imaginava o quanto ela sofria, o quanto ela ainda sofre. O quanto se sente solitária ao deitar na cama ao lado daquele homem que ela tanto ama e amou e receber dele nem ódio, apenas indiferença. Ser trocada por uma tela de celular. Ela trocaria tudo por amor. Ela só queria ser amada. Por ele. Ela só queria ser feliz como os que amam e são amados de volta.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Desculpe-me

  Esse texto é no fundo um pedido de desculpas.
  Hoje eu voltava para casa, com essa alergia típica de inverno do louco tempo carioca (esfria-esquenta-esfria) quando, ao espirrar, um senhor, à porta de sua casa, me diz:
  -Ih, minha filha, também estou com essa alergia braba.
  Eu apenas dei um sorriso amarelo e continuei andando. Uns dois minutos depois, bateu-me um peso na consciência. Aquele velhinho talvez fosse solitário e estivesse apenas querendo uma companhia, ouvir uma voz diferente dos sussurros dos que já se foram. Talvez ele estivesse apenas sendo simpático, sem segundas intenções.
  Então, peço-lhe desculpas, meu amigo. Sei que esse pedido não chegará ao senhor, e, se chegar, talvez você nem se lembre desse episódio que durou 5 segundos. Mas minha consciência fica mais tranquila sabendo que pude externar minha angústia.
  Peço desculpas por não ter te respondido propriamente. Mas espero que entenda que no fundo a culpa não é minha. A antiga eu nunca teria te ignorado. Mas essa antiga eu não existe mais. Ela sofreu decepções cada vez que saiu na rua. Ela não aguenta mais olhos devoradores que a comem inteira e a deixam com vergonha, desejando não estar ali, desejando voltar para casa, trocar de roupa. Ela não aguenta mais velhos com seus sorrisos safados que a enojam. Ela não aguenta mais ouvir um "bom dia" malicioso. Ou encoxadas no metrô. Ou gestos obscenos proferidos por homens sujos. Ou buzinadas e risadas deselegantes. E aí parece que todo ser do sexo masculino que encontramos na rua quer zombar de nós, nos humilhar. Como se eles nos vissem apenas como meros objetos feitos para satisfazê-los. E não sou apenas eu que estou cansada disso, somos todas. Isso acaba com nosso dia, nos deixa mal.

  Então, desculpe, Senhor. Eu percebi que essa não era sua intenção. Mas a sociedade me ensinou a me defender de qualquer ameaça que tenha um órgão sexual diferente do meu.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Pânico

   Há um tempo entro em estado de pânico cada vez que saio sozinha. Veja, é tanta notícia que aparece no meu facebook ou dá na televisão, que é impossível não ficar neurótica. Então agora cada folhinha de árvore que cai na minha frente me assusta (sim, de verdade, meu coração quase pula da boca quando isso acontece). Cada moto barulhenta, bicicleta que passa perto demais, carro muito devagar. Todo homem sozinho me faz gelar por dentro. Até gritos entre velhos amigos me fazem pular (tenho a impressão que estão tramando algum assalto?), pessoas correndo (às vezes simplesmente se exercitando, mas sempre parecem estar correndo de/atrás de um assaltante).

   Desenvolvi uma quase fobia também de crianças. Sim, crianças. Infelizmente é uma realidade nesse Rio de Janeiro onde crianças em bando furtam pessoas desavisadas como eu. Agora não posso ver nenhum molequinho que me apavoro, das pernas ficarem bambas. Penso a que ponto chegamos de crianças assaltarem e de nos assustarmos com elas, sendo que elas eram para ser a coisa mais pura de nossa humanidade. Infelizmente a sociedade está as corrompendo rápido demais.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Rotina

Acordar cedo. Pegar trânsito. Estresse. Lotação do metrô. Mau humor. Muito trabalho. Nenhum tempo livre, nenhuma diversão. Aguentar gente mal educada. Estudar coisas que não gosta. Dormir pouco. E a vida, quando começa? Para que se matar de esforço para 1 mês de férias? Ser feliz apenas em 1 mês de 12? Já percebeu o quanto é errado contarmos os dias para o final de semana? Significa que a semana é uma merda. E aí o tempo passa, você não aproveita a vida e depois morre. Contou todos os dias que eles acabaram e o dinheiro sobrou. Cada um em seu mundo, sem ligar para os outros, no seu próprio sofrimento. E a vida passando. E a gente só estudando sem aproveitar. Um verdadeiro desperdício.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Poema sobre Cupido e Psiquê

Psiquê, uma bela jovem
Deixava Vênus irritada
Então mandou Cupido
Deixar a jovem apaixonada

Mas isso não adiantou
Pois Cupido apaixonado por Psiquê ficou
Mas Vênus não podia saber
Que Cupido era louco por Psiquê

O oráculo a enganou
E no campo Psiquê ficou
Esperando o noivo monstro
Que o Cupido se disfarçou

Feliz com Psiquê
Ele a fez prometer
Que nunca ia ver o rosto
Do seu amado noivo

Mas as irmãs foram visitá-la
E com inveja elas ficaram
Contra Cupido a envenenaram
E ela resolveu desmascará-lo

Descobriu a farsa do marido
Que a abandonou
Foi atrás dele no Olimpo
E com Vênus se deparou

Depois de tarefas realizar
Com o Cupido ela conseguiu ficar
Então virou imortal
E felizes ficaram no final

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Disputa pelo título de mais ferrado

 Uma coisa que me irrita nas pessoas é quando menosprezam a dor do outro e suas dificuldades.
   "Nossa, tenho tanta coisa para fazer hoje."
   "Você? Faz-me rir. Olha para mim, tenho estágio e a faculdade e 300 trabalhos para amanhã."
   Parece uma constante disputa por tudo, até para ver quem está mais ferrado.
   "Ensino fundamental não é nada, recuperação em 10 matérias? Fiquei em 12. Difícil mesmo é o ensino médio."
   "Você acha que seu mundo vai acabar só por que está no ensino médio? Minha filha, estou na faculdade, estou muito pior que você."
  "Jovem não sabe o que é sofrer, não tem contas para pagar, trabalho, filho para cuidar..."
  Vamos parar de nos gabar um pouquinho e prestar atenção no outro? Você não sabe o grau da dificuldade que ele está passando, não tente medir. Que tal ouvir ao invés de sair falando asneira? Ajudar o próximo. Faz bem para alma e para o coração e é bem melhor do que ser narcisista. 
  "Nossa, você tem tudo na vida, não existem problemas para você. Chorando por que é ansiosa? Faça-me o favor, não sabe o que é a vida, quanto drama, tem gente mais necessitada que você, né."
  Não tente diminuir meus problemas. São meus e só eu sei quanto dói. Deixe-me chorar e reclamar do que eu quiser.
  Daqui a pouco vai ser "nossa, você perdeu sua mãe? Eu perdi minha família toda num incêndio, você não tem o direito de sofrer e reclamar mais que eu."
  "Ah, você perdeu uma perna? Pois eu perdi duas, sou mais sofrido que você."
  Me poupe, se poupe, nos poupe.

  Grata.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Respostas

  Às vezes você se pega pensando que a vida é um sonho? Ou que você morreu e não percebeu?
  Ou que talvez sejamos todos partes de um jogo, como The Sims.
  Ou que todos esses pensamentos são só uma tentativa falha de dar um sentido à vida?
  Aliás, por que estamos aqui? Qual nossa missão na Terra? Sou apenas um pontinho insignificante na multidão ou mudarei a história? Que diferença faz se um dia o Sol explodirá e acabará com toda a existência? Não importa se seu nome está nos livros se eles vão ser destruídos em algum momento. Você e Shakespeare serão iguais. Ou talvez você seja mais feliz que ele, e isso vale mais a pena.
  Qual o sentido de viver e depois morrer? O que acontece depois da morte? Essa é a pergunta que mais me instiga, que me faz chorar à noite e ter ansiedade. Não quero deixar de existir, que fique tudo preto, mas o que seria viver nos céus pela eternidade? Onde fica o céu no universo?  Seres de outros planetas tem um céu separado e outro Deus ou vêm para cá também? Quanto tempo dura a eternidade? Me dá um nó na barriga só de pensar como tenho medo da morte. Parece tão...solitário. Não quero ficar sozinha, não quero ficar sozinha. Quero o sol, o vento, a piscina, um bom livro.
  É normal alguém temer esse momento desde a infância? Sinto que vivo mais com medo da morte que vivendo. E se eu não aproveitar a vida? A ideia de reencarnar também me deixa tensa. Não lembrar de mim mesma, dos meus pais, dos meu bichinhos, do meu amor? Acho a ideia de almas se reencontrarem várias e várias vezes bela, mas não quero ser outra pessoa. Quero ser quem sou agora.
  A religião traz algum conforto, acho. Ela prega algo depois da morte e me agarro a isso com toda a minha força. Não ter algo para acreditar é muito triste. Eu surtaria sem a esperança.
  Acho que é algo que nunca vou superar, esse pânico. De tudo acabar, assim, num piscar de olhos. O que evita de não ser eu a escolhida, e sim o outro?
  O infinito também me dá pavor. Até onde vai? E o que tem depois dele? Infinito é uma palavra muito assustadora.
  Desde quando Deus existe? O que existia antes Dele? Quem criou Deus? Não deve ser uma tarefa muito solitária, ser Ele? Ninguém nunca lhe deu uma bronca dizendo "você fez tudo errado?" Gostaria de ter toda essa confiança que Ele possui. Será que Deus tem inseguranças? Será que precisa de um colo e um abraço às vezes? Não está cansado de todo esse trabalho?

  Quando eu era mais nova e perguntava para todo mundo sobre a morte, meu coração se apertava a cada resposta e nenhuma me satisfazia. E continua não satisfazendo. Eu faço perguntas demais, e esse é meu problema. Elas me engolem e eu acabo virando apenas o medo das respostas.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Amélie Poulain

  Eu gosto de apreciar pequenas coisas da vida. Um bom texto. Um brigadeiro. Um abraço. Observar meu namorado na praia, seus cabelos pretos contrastando com a cor da areia. Um cobertor quentinho e um livro com o barulho da chuva batendo na janela. O sorriso de um desconhecido na rua. O sol tímido aquecendo a minha pele num dia frio. 

  Acho que às vezes sou como Amélie Poulain do século XXI, trocando a lady Di pela Kate Middleton. Amélie é uma jovem meiga que aproveita os pequenos momentos, como enfiar a mão bem fundo no saco de cereais. 

  E esses são alguns dos meus pequenos prazeres. Só falta-me um fabuloso destino.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Amor próprio

  "Você precisa se amar primeiro para poder amar o outro." Acho que essa é umas das frases mais sem-noção que já ouvi na minha vida. Eu não me amo, nunca me amei. Suporto minha presença, às vezes sou capaz de gostar da minha própria companhia. Mas me amar? Não, amar já é uma palavra muito forte para se tratar do que sinto por mim. Agora dizer que não sou capaz de amar os outros porque não me amo é a maior besteira. Eu amo meus pais, minha cadelinha, meu namorado, meus amigos. E não venha se meter no tipo de amor que sinto. Claro, a vida seria mil vezes mais fácil se eu não vivesse num pé de guerra comigo mesma. As crises de ansiedade talvez fossem menores. As lágrimas talvez escorressem menos. E essa vontade de não existir por achar que não mereço tudo que eu tenho poderia desaparecer.
  Eu queria me amar, de verdade. Mas acho que por querer tanto, não consigo. Parece forçado, não natural. Como amar a mim mesma quando vejo minha cara inchada de choro, quando lembro dos vexames e vergonhas e burradas que passei, sabendo cada defeitozinho que possuo? Como posso me amar sabendo todos os meus pensamentos, sem poder esconder nenhum de mim mesma, apenas para fingir que aquilo não passou pela minha cabeça?

  Em "Cisne Negro" a protagonista ouve a seguinte frase: "A única pessoa que está em seu caminho é você mesma." Bem, essa frase é muito mais verdade para mim que a primeira. Sou sempre eu que me retraio, que freio meus sonhos quando eles estão se tornando realidade. Penso: "sou mesmo merecedora de toda essa maravilha?", porque eu realmente acho que não sou, que não mereço. Que minha existência na Terra não faz muito sentido. Não vim para mudar o mundo, por mais que queira. Se eu desaparecer, talvez algumas pessoas sintam minha falta de primeira, mas depois seguirão em frente como se eu nunca houvesse existido. Eu sou apenas mais uma alma perdida nesse enorme mundo cheio de possibilidades melhores. Ou talvez eu imagine isso tudo e esteja redondamente enganada. Não sei.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

A fada

  Parece mais um dia comum. Meus pais já voaram para o trabalho e, da minha cama, posso ouvir minha irmã cantarolar uma melodia alegre, como faz todas as manhãs, enquanto prepara a comida. Coloco os pés no chão, com o pensamento de que, parece, mas hoje não é um dia comum. É 25 de dezembro. Meu aniversário. E o Natal, para os humanos.
  As fadas não comemoram o Natal, pois nossas crenças são outras. Para nós, há apenas a Criadora e a Traidora. Não temos feriados pelos feitos da Criadora. Apenas pedimos sua benção e proteção (“e que não tenhamos os pensamentos de sua filha, Abgail, a Traidora”.) Também não pagamos pelos erros de Abgail, filha de nossa própria Criadora, que se apaixonou por um humano e deixou nosso reino e sua imortalidade para viver como um deles.
  Apesar da maioria de nós não suportar os humanos (“eles não voam! Não possuem poderes! Tiram férias! Não são focados! Como podem viver assim?”), eu os acho intrigantes. Temos nossas festas e nossas alegrias e, acredite em mim, elas são incríveis, mas meu povo não é tão sentimental. Nossas emoções não transparecem tanto quanto a deles. Gosto de observá-los. Como eles passam de felizes, para raivosos, para melancólicos em apenas um minuto! Fascinante!
  Coloco meu vestido de trabalho, uma peça lisa e laranja, com o comprimento até o joelho e alças grossas, que se entrelaçam nas minhas costas cobertas. Sua cor se contrapõe com as minhas asas, de um branco tão vibrante que atrai todos por perto. Eu sou o que consideram bonito, com meus cabelos ruivos, como o da Criadora (“Uma menina abençoada”), e curtos, diferentemente do dela, com uma irritante franja em minha testa (arrependo-me profundamente desse corte).
  Adentro na sala e sorrio para minha irmã.
  - Bom dia, minha flor. Ansiosa para hoje? – Pergunta ela, colocando um pão tostado na minha frente.
  Esqueci de comentar que hoje faço 18 e, por isso, poderei fazer minha primeira visita oficial ao mundo dos humanos? É claro que meu povo não sabe que já os visitei antes.
  - Um pouco nervosa, na verdade. – Minto; essa é a resposta que esperam de mim.
  Minha irmã me encara com seus olhos castanhos. Eles são bem intimidantes.
  - Não precisa de nervosismo. Humanos são completamente estranhos. Não irá gostar deles, choram por tudo. E como mentem e bebem! Parecem uns porcos. – Seu rosto se contorce em uma careta de nojo, enfeando minha irmã. Ela não possui sardas como eu e é muito magra. Seu cabelo é de um tom mais escuro e já está arrumado em seu perfeito coque.
  Ela alisa seu vestido azul e pega meu prato, ainda que eu não tenha acabado:
  - Está pronta? Te deixarei no Lik e irei para o meu trabalho.
  Hoje eu não trabalho. Tenho que me encaminhar até o Lik, um moderno prédio espelhado onde me encontrarei com o prefeito e mais três fadas e poderemos embarcar para a Terra em uma nave esquisita e pequena. Se fôssemos simplesmente voando, explodiríamos assim que chegássemos no espaço, me disseram. Não serei eu a duvidar.
  Minha irmã trabalha nas plantações, enquanto eu trabalho na fábrica têxtil, por isso nossas cores são diferentes. Somos designadas a nossas tarefas quando pequenas, assim que temos capacidade de demonstrar nossos dons. Mamãe é uma cantora maravilhosa e papai um excelente médico. Não recebemos salário; recompensas só aumentam a cobiça e isso é coisa de humanos. Fadas são gentis, amáveis e livres de desejos maliciosos. Ou seríamos: alguns de nós se renderam e viraram humanos, como a Traidora, e é assim que são chamados também. Se apaixonam pelo poder, pela fama, ou até mesmo por um deles. Os últimos não são tão desprezados. Valorizamos o amor acima de tudo, mas e o amor pela sua família? Pelos amigos? Não podemos deixá-los para trás.
  Saímos de nossa casinha de madeira, idêntica a todas as outras da cidade, apenas diferenciada pela cor do telhado. Nossas telhas formavam um V de cabeça para baixo púrpura, como as asas da minha irmã, só trocando a posição da letra. Ela deposita a mão direita nas minhas costas, entre minhas asas, e andamos lentamente (culpa desses saltos, ainda não me acostumei com eles. Sapatilhas são mil vezes melhores) nesse dia claro, com o céu límpido e o sol brincando em nossas peles.
  A caminhada não é longa, por isso não voamos. Voar é exaustivo e requer muito esforço. Assim que chegamos na porta do Lik, minha irmã me abraça.
  - Boa sorte e tenha um feliz aniversário. Verá como os humanos são chatos.
  Rimos uma para a outra e a observo levantar voo e sumir no horizonte, sem olhar para trás. Respiro fundo e entro no prédio.
  - Bom dia, docinho. O que deseja? – A voz suave pertence a uma mulher de pele negra e cabelos encaracolados, presos em outro coque arrumado. Sua maquiagem está impecável. O que a estraga são seus dentes grandes e tortos, que parecem não caber em sua boa. Por Cleo, nossa Criadora, pensar em beleza e feiura é atitude de humanos!
  -Hã, faço 18 hoje. – respondo, completamente fora do padrão. A frase perfeita, ensaiada tantas vezes com mamãe deveria ser “Bom dia, senhorita. Estou aqui para encontrar o senhor prefeito Edgar Hoolug e partir para a viagem à Terra.” Então informá-la meu nome completo e minha data de nascimento, juntamente com meu endereço e nome dos meus pais. Pelo visto, já comecei falhando.
  Ela ergue as sobrancelhas, claramente percebendo meu erro. – Certo. Aproxime-se para organizarmos seus dados.
  Após concluída a parte maçante, que consistia em uma densa leitura de regras e explicações (creio que tudo seja para poupar o prefeito desse trabalho), a moça me indicou o caminho. Segui o longo corredor, porém, ao invés de virar à direita, fui para a esquerda. Não por engano.
  - Que demora. – Disse Thomas, sentado logo mais à frente, em seu posto de segurança.
  - Você não deveria, sei lá, estar com o prefeito?
  - Hoje estou encarregado de levar a donzela aos aposentos do senhor Hoolug para que ela possa conhecer os humanos pela primeiríssima vez. – Como se sua voz já não estivesse repleta de sarcasmo, ele me lança seu sorriso mais sacana, aquele que deixa minhas pernas bambas.
  Thomas é meu namorado, futuro noivo, já que em nosso reino os casamentos ocorrem cedo. O nosso amor é antigo e recheado de zombarias um com o outro. Os mais velhos nos adoram, pois gostamos de mostrar o amor aos outros e geralmente andamos de mão dadas na rua. Também temos nossos segredos, como todo bom casal.
  Thomas trabalha no Lik há quatro anos, desde que completou 16, sendo indicado pelo pai, que também tem um emprego aqui, como secretário do prefeito. Por isso, ele tem acesso a chaves e locais que ninguém tem. Como a sala onde ficam as naves capazes de nos conduzir a Terra. O manuseio delas não é difícil e então, de vez em quando, nós dois visitamos os humanos, sem que ninguém saiba, e passamos um dia romântico em outro planeta. Aliado a nossa curiosidade por esses seres, há também o fato de compartilharmos um segredo só nosso e a adrenalina de fazer algo errado e não sermos pegos.
  Beijo-o para fazê-lo calar. E vamos fingir que o beijei apenas por isso, e não porque seus lábios finos me atraem. Huuum, gosto de canela.
  Sorrio assim que nos separamos. Thomas tem olhos cinzas e cabelo loiro, bem cortado.
  - Bem, será minha primeira ida à Terra sem você. – Sussurro e o beijo de novo. Ele ajeita meu coque e dá uma risadinha. Eu nunca soube fazer um direito. Vou embora logo depois.
  Olho para trás e o vejo parado, imponente e alto, com seus músculos e toda a sua força adquirida no treinamento para segurança. Ele pisca para mim e eu retribuo mandando um beijo.
  Sigo em frente e entro onde deveria ter ido primeiro. Entretanto, não podia passar o dia fora sem ver Thomas.
  Abro a porta sem bater e vejo que todos os três outros parceiros de minha viagem já estão acomodados em suas poltronas, uma ao lado da outra, com os cintos devidamente colocados. O prefeito, em pé, vira-se para mim e abre um enorme sorriso.
  - Querida, estávamos a sua espera. Entre, entre. Presumo que srta.Linfg já tenha lhe explicado tudo.
  Dois homens, ao lado do prefeito, me conduzem até a cadeira do canto, a única vazia, e colocam o meu cinto. Eles descem do palanque e fecham a porta. A nave é apenas isso. Quatro assentos, postos ao lado do outro e apertados num pequeno corredor, com uma porta horizontal de vidro. Vejo o prefeito sorrindo e acenando para nosso transporte minúsculo e os guardas de branco entrarem na parte da frente, onde pilotarão.
  A viagem é curta, apenas 20 minutos, e super desconfortável. Sinto minhas asas presas e foco em olhar a dos meus companheiros, para me distrair durante o percurso. Nenhuma palavra é trocada por nós; todos parecem bastante tensos.
A do garoto ao meu lado é verde da cor do mar e tento me deter aos detalhes. A asa dele possui umas linhas em forma de círculos, bem delicada. A da garota logo depois é mais chamativa. Eu a reconheço só pelas suas cores. É Louise, minha vizinha, e ela nunca passa despercebida, já que possui sete cores em suas costas. Os tons do arco-íris, num estilo dégradée. Nosso último companheiro tem um tipo diferente de asa. É vermelha, contudo, há bolotas pretas espalhadas por ela, como uma joaninha. Encaro-a por tanto tempo que o menino fica desconfortável e desvio o olhar. O trajeto é tão rápido que, infelizmente, não dá para ver nada do universo passando por nós. Por isso, fecho os olhos até o percurso acabar.
  A nave dá um tranco e nossa porta se abre automaticamente e os cintos sobem ao mesmo tempo. Sinto-me livre. Sou a primeira a descer da nave. Está quente, e no nosso reino nunca faz calor, nem frio. A temperatura é sempre agradável. Gosto de ter essa sensação sob minha pele. Meus companheiros estão completamente assustados, enquanto eu estou feliz, como se reencontrasse uma antiga amiga. Tão feliz que flutuo a alguns centímetros do chão. Percebo que minhas asas estão batendo sozinhas, levemente, de tanta alegria. Voar exige concentração na dominação da felicidade. Respiro fundo, para não exagerar e acabar perdendo o controle e voando para perto dos aviões.
  Meus companheiros finalmente perdem o medo e se aproximam devagar. Estamos em um penhasco, olhando os montes e os vales lá embaixo. As pessoas e seus carros parecem formiguinhas daqui de cima. Posso ler o pensamento da maioria, sentir as emoções, como meu poder me permite. Sento-me perto de uma árvore nesse enorme tapete verde em que piso e observo as pessoas, minhas asas querendo bater de tanta empolgação.
  Uma maçã cai perto de mim e a agarro. Está deliciosa. Tenho o dia todo pela frente. O sol está no alto. Daqui a pouco, quando todos estiverem mais calmos, desceremos e conviveremos com os humanos mais de perto, nossas asas (assim como nossa nave) camufladas.
  Essa experiência serviria para mostrar as fadas mais novas o quão abominável é o mundo dos humanos. Caótico. Na maior parte das vezes, funciona, minha irmã mesmo acha isso depois que passou por aqui. Mas eu não. Eu adoro.

  Feliz aniversário, digo para mim mesma. E feliz natal.  

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Primeira vez

  Hoje eu fui ao mercado para comprar lasanha pronta para o almoço já que estava com pressa. Só mais tarde fui perceber que era a primeira vez que fazia compras sozinha, não que essa informação seja relevante para a história.
  Eu pulava de fila em fila, procurando a menor e, distraída, parei na que tinha menos pessoas. Coloquei a cesta no chão e comecei a mexer no celular. Alguns minutos depois um senhora me para e pergunta, educadamente:
  - Com licença, a senhora está grávida?
  Assim que ela fez a pergunta, minha autoestima foi por água a baixo. Toda mulher (ou quase toda) teme essa fatídica pergunta e o dia que ela irá aparecer. Minha primeira vez nem demorou tanto assim. Minha reação imediata foi olhar para a minha barriga, checar se ela estava mesmo muito grande assim para me confundirem com uma grávida. Eu sei que tinha engordado um pouco devido a quantidade de doce que como, mas estava mesmo tão gorda?
  Soltei um não meio assustado, meio surpreso e a senhora sorriu um pouco sem graça e pude ver nos seus olhos que ela esperava essa resposta, o que me deu um certo alívio. Ela não me achou gorda, afinal.
 - É que a senhora parou na fila preferencial. - disse, apontando para a placa enorme bem à minha frente. Só uma anta mesmo não veria o aviso.

  Sorri, com vergonha e agradeci pelo aviso. Ela não disse por irritação, queria apenas me alertar mesmo para não perder meu precioso tempo numa fila que a caixa poderia se recusar a me atender por um simples erro meu. Acho que meu pânico foi desnecessário, mas, às vezes, no escuro, penso qual será a próxima vez que me confundirão com uma grávida e se a confusão será causada por uma placa ou pelo tamanho da minha barriga. Coitada da minha autoestima.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Inveja

   Uma vez meu namorado me disse que a pessoa que ele mais amava era o irmão. Senti inveja, admito. Não do irmão, por ser o mais amado. Sei que meu namorado me ama - sou a garota que ele mais ama, e não duvido do seu amor. São amores diferentes, simplesmente não dá para comparar. Senti inveja de não ter uma relação assim. Desejei ter um irmão, ou uma irmã.
   Veja bem, ser filha única tem suas qualidades e quis o destino que fosse assim. Não sou eu que irei julgar as decisões do Todo-poderoso. Acho que até faz sentido eu ser a única filha que meus pais tiveram e eu costumo gostar de ser. Mas, quando vejo uma relação entre irmãos, bate uma solidão por não ter aquele laço. Você pode ser feliz sozinho até olhar como os outros estão felizes se relacionando. Tenho relações próximas, como minhas primas que considero irmãs e, por mais que às vezes elas possam dormir por dias aqui em casa, nós não temos essa ligação rotineira de irmão, as brigas, as piadas, o costume, a intimidade. Há algo mais íntimo nessa vida que um irmão? É sangue do seu sangue, mas mais companheiro que seus pais, uma ligação inquebrável e insubstituível, que nada nem ninguém pode afetar, com quem você pode compartilhar segredos e travessuras, quem fez da sua infância mais alegre e menos solitária.

   Agora se você tem um irmão e menospreza esse laço, o que você está fazendo com a sua vida? Por que jogar fora um presente que tantas pessoas desejam ter e não podem porque não depende deles? Não há nada mais puro que o amor fraternal. Eu tenho uma amiga que não conhece o próprio irmão, já que ele mora em outro estado e é bem mais velho que ela. Penso que deve ser muito triste ser privada dessa companhia, não conhecer alguém tão parecido geneticamente com você. Então, se você tem um irmão, não deixe de aproveitar essa oportunidade. Faça isso por mim e por todos que desejam ter um companheiro de vida.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Morte, sempre ela

  Eu sempre tive medo da morte. Toda experiência que tenho com ela vira obrigatoriamente um texto. Esse aqui está entalado na minha garganta há meses, esperando o momento certo para sair. Tive a certeza que precisava falar sobre isso quando fecharam o caixão. Aquela era última hora de ver o rosto da pessoa amada antes dela partir de verdade. Ela não estava mais ali, seu espírito já havia partido, mas o fato de termos algo para nos agarrar, mesmo que seja físico, vazio e que parece falso e irreal como um boneco de cera, nos faz não querer que aquele último pedacinho da pessoa se vá.
  Quando fecharam o caixão, eu soube que estava acabado, não tinha mais volta. Não haveria mais sorrisos, mais abraços, mais olhares. Estava fechado para sempre.
  Então, como se não bastasse essa dor, meu coração se apertou quando o caixão com o corpo daquela senhorinha simpática entrou naquele compartimento tão frio, cinza, pequeno e solitário. Então era isso, ela ia passar o resto da eternidade ali, sozinha, fechada. Tão irreconhecível como os outros túmulos ao seu redor. Ali parecia que ninguém era especial, que ninguém tinha tocado vidas diferentes. Todos se misturavam e se confundiam, ninguém se destacava. Ela se tornara apenas mais uma e isso doía.

  Tudo aquilo acabou comigo. Eu não quero ficar sozinha daquele jeito. Eu não quero ser esquecida. Não quero me perder no meio de uma multidão morta.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

A vizinha

   Parecia um filme de terror. Uma mulher morreu na casa aqui do lado e ninguém notou, apenas uns vizinhos ficaram incomodados com o cheiro horrível de podre e resolveram investigar. Ela já estava morta há duas semanas e ninguém sentiu falta, quase foi enterrada como indigente. Deve ser horrível ser tão sozinha assim na vida que simplesmente ninguém percebe que você sumiu por tanto tempo.
   Ela morava num casarão, sozinha. Aquele lugar imenso só para ela. Imagino o eco que seus pés solitários faziam no chão.
   Comecei a matutar sozinha a causa de sua morte e um dia verbalizei, perguntando ao meu pai se achava que a mulher havia se suicidado. Veja bem, cabeça de escritor vai longe, já pensei em tudo que aquela mulher podia sentir. Meu pai se espantou com minhas palavras e disse que não. Ela já era uma senhora e devia ter escorregado no banheiro e batido a cabeça. Vou admitir que fiquei um pouco decepcionada. Um morte tão... mundana. Eu, que já havia criado toda uma história para aquela pessoa que nem conhecia não imaginava que ela havia morrido de uma forma tão não-dramática. Eu nem sabia se ela era alta ou baixa, gorda ou magra, negra ou branca, qual era a cor dos seus olhos. Só sabia que ela era minha vizinha e que tinha morrido. Que mundo estranho esse que uma pessoa mora tão perto de você e não se sabe nada sobre ela. Me sinto meio culpada por nunca ter dado atenção para os outros na rua.

   Será que ela tinha um antigo romance? Seria homem ou mulher?  Como fiquei curiosa pela sua vida depois de sua morte. Um fato mórbido, talvez isso mostre o quando eu sou estranha. Todo mundo parece ter esquecido dessa pobre senhora agora que está tudo resolvido e eu aqui continuo pensando em como ela era quando viva. Alegre, resmungona? Será que ela gostava de música para encher o vazio daquela casa tão grande? Será que seu espírito permanece ali, esperando por amor? O lugar me chama, cheio de segredos, mistérios e histórias que eu gostaria de ouvir.

quinta-feira, 30 de março de 2017

Máquina do tempo

  Acho que a vida vale muito mais a pena quando não existem tanto arrependimentos. Ou, pelo menos, quando percebemos que nossos erros nos ajudaram a crescer, e não ficarmos nos martirizando. Quero chegar ao final da minha vida e, quando perguntarem o que eu mudaria se tivesse uma máquina do tempo, eu diria: "nada".
  - Nada mesmo?
  -Nadinha.
  -Não voltaria a nenhum momento se tivesse uma máquina do tempo?
  -Não.
  Infelizmente não sei se serei esse tipo de pessoa. Se me perguntarem, direi que gostaria de voltar para a manhã do dia 24/03/2017. E mudaria tudo. Ou pelo menos poder te abraçar pela última vez.
  Esse foi o dia que levei minha cachorrinha Lore para fazer sua terceira cirurgia. A mais simples de todas, apenas retirar umas pedras dos rins. Ela não sobreviveu.
  Eu deveria ter sentido. Minha Lolo estava tensa, tremendo. Eu deveria tê-la pegado no colo e levado para casa. Não devia tê-la deixado lá, sozinha. Sinto como se tivessem roubado de nós anos juntas. Não era para ela partir tão cedo. Eu não estava nem um pouco preparada para perdê-la.
  Eu ainda não acredito que ela se foi. Passo pela sala esperando vê-la deitada toda abusada no sofá. Fecho a porta do banheiro automaticamente para ela não fazer xixi no tapete. Imagino que ela vá bater na porta do meu quarto para pedir para entrar, com sua carinha meiga e pedinte. Chego em casa e me surpreendo por ela não estar lá balançando o rabinho, latindo e pedindo colo. Tudo parece tão vazio sem a presença desse serzinho. Eu me neguei a aceitar. Perguntei aos céus porque queriam minha princesa como anjinho tão cedo. Provavelmente lá em cima sentiam tanta falta dela quanto eu sinto aqui em baixo. Porque ela era (e é) pura, com o amor mais puro que existe e entendo porque eles a queriam por perto. Mas eu também quero. Eu esperei por um milagre. Esperei me dizerem "foi tudo um engano", "ela voltou à vida". Esperei acordar do pesadelo. Mas o pesadelo era simplesmente a realidade e dessa não tem como acordar. Esperei por qualquer uma dessas coisas por 3 dias, até perceber que não tinha volta.

  Quantos momentos desses ainda passarei na minha vida? Quantas vezes desejarei ter uma máquina do tempo para não perder alguém tão importante para mim? Meu coração está partido e eu sei que será partido no futuro também. Mas não posso evitar de ter medo.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Aos 20 anos

  Sentada à penteadeira, observo meu rosto no espelho e um porta-retratos meu aos 20 anos de idade. Passo a mão pela minha pele enrugada e sinto lágrimas se acumularem nos meus olhos. Não posso chorar, não agora. Minha neta está chegando e nós vamos sair. Sempre gostei de passear, mas há muito tempo não é um garoto que me acompanha para tomar sorvete e flertar, só restou-me minha filha e minha neta.
  Não resisto à tentação de olhar novamente à foto. Sei que vou chorar se vê-la, mas é irresistível. Os olhos daquela garota que um dia fora eu me prendem. Seu sorriso me prende. Oh, eu era tão bonita. Minha pele era macia, meu corpo era magro, meu cabelo era preto. Hoje tenho uma pele caída, um corpo que eu não reconheço e meus dedos do pé se misturam devido ao joanete. O que aconteceu com aquele espírito tão aventureiro? Por que nosso corpo envelhece tão rápido? Eu não estava preparada. Minha autoestima diminuía a cada vez que mais anos eram acrescentados. Chorava achando que meu marido não me acharia mais bonita ou atraente, o meu peito caía, minha pele enrugava, minha barriga foi se tornando flácida, a bunda foi tomada pela celulite. Sempre me diziam: “pare de besteira, você é linda” e eu me perguntava quanto tempo essa beleza ia durar e o que achariam de mim quando ela se fosse. Quem sabe seria mais vantajoso nunca ter sido bonita para não sofrer essa perda. O amor seria capaz de resistir à feiura do cruel tempo? Seria tão forte como no começo quando éramos todos jovens, belos e com uma vida inteira pela frente, com tantos sonhos e tanto fogo nos olhos? Eu amei meu marido até sua morte, até depois dela, mas eu não me amava. Eu odiava o que via no espelho, o que havia me tornado.  
  Minha neta entra para atrapalhar meu pensamentos. Ela é linda, tão linda quanto eu fui. Tenho vontade de falar para ela aproveitar ao máximo sua juventude e beleza, para se cuidar para não ficar que nem a avó. Mas sei que ela não vai me escutar, nenhum jovem escuta, em qualquer geração. Eu não ouvi quando minha avó falou.
  Talvez seja tudo uma futilidade para os moralistas que dizem que a beleza não importa. Não nego que não é só a beleza que faz o amor e eu mesma não tinha só essa qualidade, graças a Deus, mas em questão de autoestima, a minha sempre foi baixa, e ter um corpo jovem ajudava a situação a não piorar.
  Aproveite o sol, mas passe protetor para não ter essas manchas que eu tenho. Se alimente bem, faça exercícios, cuide da pele.
  Mas nenhum jovem quer seguir certinhos essas ideias. A vida é muito curta para se preocupar tanto com como você se parecerá no futuro. Só ansiosos como eu eram capazes de chorar ao 18 anos de idade por pensar em como será quando ninguém mais lhe achar desejável, quando você só for “a velhinha fofa que dá vontade de apertar”, mas ao mesmo tempo não querer largar o chocolate ou passar aqueles incontáveis cremes antes de dormir porque está com preguiça.
  Bem, esqueça os conselhos. Corra, minha menina, enquanto suas pernas são ágeis. Abrace forte aquela pessoa amada enquanto pode. Chore e sorria sem medo das rugas. Dance e cante bastante antes de perder a energia. Não se preocupe com a velhice. Eu me preocupo por ela o suficiente por nós duas.
-Tá pronta, vó? – Ela me pergunta.
  Passo meu perfume e coloco meu colar de pérolas. Minhas unhas estão pintadas de um rosa claro. Posso estar velha, mas minha vaidade não me deixa desistir de parecer pelo menos um pouco bonita e desejável novamente. Me levanto, dou um abraço nela e sorrio. Não poderia não passar o batom, então nada de beijos.
- Estou sim, minha querida.

  Ela me dá o braços e antes de fechar a porta ao sair olho novamente para eu mesma aos 20 anos. O que aquela menina diria? Acho que ela também diria que está pronta, seja para o que for.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Escreva!

Encarar a página em branco não é fácil. Você pensa, pensa e pensa mais um pouco e nada vem à mente. O que falar dessa vez que as pessoas já não saibam? Que assunto abordar? E o vazio continua encarando e nenhuma palavra é preenchida. Ah meu Deus, eu preciso escrever. Mas o que? Não tenho nada para falar, só sei que preciso. Preciso escrever para viver, para suportar toda a crueldade desse mundo. Mas às vezes dói demais. Dói tanto que não dá para colocar para fora tudo que sinto de uma maneira que pareça boa o suficiente para os outros, e para mim. Por isso continuo encarando a tela em branco, com raiva de não saber organizar os pensamentos e escolher um bom tema. E ela me assombra, essa tela. Me assusta, me faz parecer inútil. Ela parece gritar "Escreva! Escreva! Escreva!" E todos parecem gritam "Escreva! Escreva! Escreva!" E assim a escrita foge de mim.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Mudança

    A garota olhou para a sala vazia. Sem móveis, sem cor, sem vida, sem sentimento. Depositou as malas no chão e suspirou. Foi um suspiro baixo, mas ecoou por todo o cômodo. A porta estava aberta e a chave se encontrava na fechadura de fora. O fato de ser tudo novo e seu, só seu, assustava-a.
    Mas não era só porque era seu e novo. Não era só uma mudança de residência, era uma mudança de vida, drástica. Significava o fim da mordomia, o fim de sua adolescência, um olá para a complicada vida adulta. Por mais que mamãe dissesse: “Estaremos do seu lado, não se preocupe”, continuava aterrorizante. Agora ela teria que se preocupar com prazos de conta, arrumação da casa, etc. etc. Falar sobre gás, encanamentos, impostos... Coisas que ela não tem a mínima noção.
    O envelhecimento. Não é mais uma criança. Agora ela está jogada no mundo. É ela por si própria. O mundo estará pronto para engoli-la se ela der apenas um passo errado. Ela não se sente pronta.

    Porém, tem que estar. Por isso, engole o choro, vai até a porta e a tranca. E começa o longo processo de mudança, porque a vida continua, a Terra continua fazendo sua rotação e translação, os ponteiros do relógio continuam girando, o tempo não para, e você precisa seguir bem de perto, para não ficar para trás.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Tragédia

  Por que toda história precisa terminar em tragédia? Por que você, leitor, está lendo isso mesmo sabendo que não terá um final feliz? Gosta de sofrer, imagino?
  Essa é mais uma história de amor. De amor ingênuo, não correspondido. De corações quebrados e partidos e despedaçados. É mais uma história sobre uma garota e suas ilusões. Ilusão de um garoto perfeito, ilusão que o garoto babaca vai se transformar num príncipe.
  Um spoiler: ele não vai. Eles nunca se tornam. Quer uma dica? Se você quer mudar a pessoa, você não a ama de verdade. Você só ama o que imagina que pode torná-la, o que você quer que ela seja.
  Não digo que não existam garotos bons, que amam de verdade. Eles existem sim. Mas é uma pena que nossa protagonista de apenas 16 anos nunca teve a chance de esbarrar com um desses. E, infelizmente, nunca vai ter.
  Era uma sexta, caro leitor. Uma noite de calor insuportável que só o Rio de Janeiro proporciona. Se você nunca visitou essa cidade no solzão de 50 graus, não sabe do que eu falo. Sorte sua. Nossa pobre menina está se arrumando para apenas mais uma social. Não, não apenas mais uma, sua primeira. E, se desse sorte, a que ela conseguiria beijar o garoto de sua sala que sempre dá mole para ela (e para o resto do colégio, mas o amor é cego, não é mesmo?). Ela coloca um short justo, blusa decotada, batom vermelho. Se sente maravilhosa. Sai do seu prédio, dando um breve tchau para seus pais. Se ela soubesse o que ia acontecer, teria voltado e dado um abraço demorado em sua família. Melhor, teria voltado. Ponto. Tudo seria diferente se ela tivesse voltado e desistido da festa. Mas a vida é cruel, claro que ela não voltou. Encontra suas amigas lá embaixo. Juntas, são o trio de excluídas no colégio. Estudiosas, quietas e tímidas, sentam nas primeiras carteiras, são as queridinhas dos professores e não conversam (muito) durante as aulas. Não são excluídas, na verdade, se excluem, e quando querem. Mas vamos colocar os pingos nos is. Nossa protagonista é a Amanda, uma menina baixinha e com bastante curvas que pinta seu cabelo de ruivo e fica muito bonita usando seu óculos de grau. Larissa é extremamente alta e reta, e também chama atenção pelos olhos verdes. Já Manuela usa aparelho, tem o cabelo extremamente liso e preto como uma índia e adora sua franjinha. As três caminham pela rua deserta, sem saberem o que as espera pela frente.
  Ainda do lado de fora, ouvem a música alta e observam quantas pessoas estão dentro da casa. Manu, a mais tímida e a única que foi de calça, parece assustada. Lari sorri, curtindo a música e já ensaiando uns passos. Se bem que, durante a festa, ela mal dança e se ocupa enfiando a língua na boca de um garoto da metade do seu tamanho. Mas não vou negar que ele é um fofo. Não disse que existem meninos românticos?
  As três meninas ficam juntas na festa por um tempo, evitando bebidas ou qualquer coisa suspeita que passe. Mas Larissa logo se separa do grupo em busca de seu par e por mais que não queria deixar Manu sozinha, Amanda não resiste ao impulso de estar perto de quem ela acha que é o amor da vida dela. Coitada. Então, largando a amiga para trás, nossa protagonista parte em procura do seu príncipe babaca.
  Ele está visivelmente bêbado quando ela o encontra. Visivelmente bêbado para todos, menos para inocente Amanda. Suas cantadas são péssimas, mas ela ri de todas. Também não consegue parar de encarar o tanquinho dele, porque é óbvio que ele já está sem camisa, esquecendo de olhar as pessoas rindo ao seu redor.
  Era uma aposta, caro leitor. O babaca tinha apostado com seus amigos babacas que conseguia pegar não uma, mas as três meninas. E começou pela mais fácil. A romântica incorrigível que lia Nicholas Sparks. Então você já consegue imaginar que no meio da festa os dois já estavam se beijando. E para o final da festa, ele queria partir para outra. Não sem antes fazer juras de amor e dizer que ela era a única. Mas foi mal ela virar as costas e ir pegar uma bebida para ele já estar com alguém que não era ela.
  A cena passa devagar agora e você consegue ver o momento que o copo escorrega da mão da Amanda e lentamente esparrama refringente por todo o chão. Você também vê a boca da menina se abrir em choque e seus olhos se encherem de lágrimas.
  Mas isso não é tudo, caro leitor. Ele corre atrás dela e agora estão no quintal da casa. Pede desculpa, diz que tudo foi um mal-entendido. Ela quer acreditar, quer mesmo, mas o vidro se partiu, a ilusão acabou. Ele a agarra, a beija a força. Toca a força. Ela tenta se desvencilhar, mas ele é mais forte e está em cima dela. Ela tenta gritar por socorro, mas a música está alta, as pessoas estão bêbadas e ninguém a escuta. E tudo que ela consegue fazer é chorar. Ela só consegue chorar enquanto aquele cara invade sua privacidade, enquanto toda a realidade a atinge com força. Ele não é um príncipe, ele é um monstro.
  Ela é largada sozinha quando ele se sente satisfeito. Sozinha, humilhada e envergonhada. Ela se levanta e anda para longe daquilo tudo. Longe dele, da música, das pessoas. Longe, longe, longe. Cambaleando mais do que andando, nem pensa em avisar as amigas, que estão à sua procura, preocupadas. De repente, não parece mais tão quente. Na verdade, parece que está muito frio e ela não consegue parar de tremer. A raiva consome cada molécula do seu corpo. Raiva dele, raiva das amigas, raiva de si própria. A vida não parece mais tão fácil e ela percebe que nunca mais será a mesma. Ela foi violada e não consegue suportar esse fato. Não há ninguém para conversar, para desabafar, para chorar. Ela está sozinha, passou a noite toda sozinha e desprotegida.
  O mundo é cruel demais para os românticos de alma sensível. A vida sempre destrói seus sonhos e esperanças da pior maneira possível. E tudo dói com muito mais intensidade. A dor que ela sentia parecia pior que a morte. A dor que ela sentiria pelo resto da vida, e a decepção, e a humilhação, tudo junto parecia pior que a morte. Seu peito estava apertado, encolhido e não tinha ar nos seus pulmões. Ela mal podia enxergar devido às lágrimas. O mundo parecia não ter solução. A não ser uma.
  O carro vinha em grande velocidade. Sim, ele era a solução. Seria rápido, indolor e tudo estaria acabado. A dor teria acabado. A dor acabou.

  Não disse que terminava em tragédia, leitor? É o que chama atenção das pessoas, não é mesmo? Veja, todos reclamam do final de Titanic e o filme é uma das maiores bilheterias da humanidade. Mas você quis ler até aqui e imagino que não esteja satisfeito como acabou, por eu ter matado a menina. Só que não fui eu que matei, caro amigo. Histórias assim são reais e isso que dói mais.