quarta-feira, 6 de julho de 2016

Última noite

  Mary desceu as escadas indignada, o som de seu salto alto ecoando pelo jardim estridentemente. Seu empresário, John Ross tentou segurá-la pelo braço pálido, mas a atriz se esquivou e tentou se aquecer com seu casaco de pele branco, jogado no ombro.
- Miss Mary, por favor, volte para dentro. Está frio e uma chuva se aproxima.
  Era comum a estrela dar ataques e descer as escadas correndo em direção à rua ladeada por mansões. Não era a primeira vez. John suspirou alto, já estava cansado de lidar com novas atrizes que deixavam a fama subir à cabeça e achavam que podiam tudo. E, por enquanto, podiam, pois eram jovens e belas, mas não talentosas. Elas iriam envelhecer e então seriam esquecidas pela mídia e por Hollywood, abandonadas no fundo do poço, sem nada. Mas agora, eram ricas e valorizadas, e Mary era uma delas. A loira sabia de seu sucesso e sabia que John estava faturando muito com seus filmes e ia mimá-la, fazendo todas as suas vontades. Ela podia ser fútil, mas era esperta.
- Ross, já disse que só volto quando tiver meus... - então Mary parou de falar e deixou os braços caírem ao lado do corpo, olhando espanta para uma figura minúscula encolhida no muro de pedra, perto do portão.
  Era uma garotinha, com longos cabelos pretos cacheados e volumosos, que contrastavam com a brancura de sua pele. Ela tremia naquela noite fria com peças de roupa tão finas e seus lábios tinham perdido a cor. Ela levantou a cabeça e olhou diretamente para Mary, com o espanto reluzindo em sua face.
  Mary apiedou-se da pobre menina e por um momento esqueceu-se da raiva que sentia e também da dúvida - como uma menina conseguiu burlar a segurança?
  Ajoelhou-se ao lado da pequena e perguntou-lhe qual era seu nome, percebendo o quão gelada a pele da magra garotinha estava ao tocá-la. Retirou rapidamente a mão do braço da menina, sentindo uma sensação estranha passar por seu corpo, algo como... pavor. Mas logo fez questão de ignorar essa sensação e se concentrar na criaturinha a sua frente.
- Suzanna, Miss.
- Ah, pobrezinha, você está tão gelada! E aqui está tão frio! Vamos, entre conosco e terá um belo banho quente e farta comida. Também deixarei você dormir tranquilamente em um dos quartos, numa deliciosa cama com uma lareira para te esquentar.
- Srta. Mary, pense racionalmente. Não podemos colocar essa criança dentro de casa. Você nem sabe quem ela é, de onde veio! Ela pode muito bem ser uma ladra!
- Ross, menos! Ela é a apenas uma criança, tenha piedade! - Replicou Mary. - A casa é minha e eu digo que ela entra. Acabou. - Dirigindo-se delicadamente para Suzanna. - Vamos, querida, venha comigo.
  A menina foi obedientemente. Recebeu todas as regalias possíveis. John estava intrigado com a garota, como ela havia conseguido chegar até ali, mas, por ora, Mary havia esquecido do desentendimento e isso era bom. Resolveu então deixar as duas em paz e retirou-se para seu quarto.
  Suzanna estava confortavelmente instalada em uma enorme cama de casal, num quarto maior ainda. Olhando para as chamas da lareira, ela ainda sentia sede. Havia conseguido entrar na casa daquela moça bonita de olhos azuis, típica dos filmes americanos, com aquele corte de cabelo dos anos 20. Mas ainda não havia alcançado seu objetivo. Levantou-se então e sorrateiramente procurou pelo quarto da atriz.                              
  Mary colocou sua camisola branca e deitou-se embaixo das cobertas para se aquecer, esquecendo completamente de fechar as cortinas. Por isso, o quarto ficava claro quando os relâmpagos apareciam no céu e assim pôde ver quando a pequena Suzanna abriu a porta lentamente. Estava chovendo violentamente do lado de fora, com trovões extremamente barulhentos. Um raio iluminou o rosto pálido da menina.
- Entre, minha criança. O que houve?
- Desculpe incomodá-la, Miss. Mas eu estou com medo. Posso me deitar com você?        
  Mary sorriu, vendo a menina tremer com o barulho de um trovão.
- Venha, pequena. Deite-se aqui.   Suzanna correu até a cama e deitou-se ao lado de Charlotte, que começou a fazer carinho em seus cabelos.                           
  Raios iluminavam o quarto periodicamente. Aquela sensação estranha estava dominando Mary novamente, cada vez mais forte, apertando seu coração. Suzanna podia sentir seu medo, os batimentos da atriz se acelerando.                               
  Por um tempo, estavam no escuro, um pouco afastadas, olhando uma para a outra. Assim que houve outro relâmpago, Mary percebeu que Suzanna havia se aproximado.      
   Escuro novamente. Quando clareou, Suzanna estava mais perto e com um sorriso diabólico no rosto. Mary se encontrava num pavor total, tentando se desenroscar dos cobertores quando sentiu o toque frio das mãos da menina em seus pescoço, a atriz esperando por outro clarão. Quando este veio, percebeu que Suzanna estava colada ao seu corpo agora e não tinha mais como se afastar. Tentou gritar, mas sua voz ficou presa na garganta.
- Não tenha medo, Miss. - sussurrou Suzanna.                      

E então veio um relâmpago e viu Suzanna abrir a boca, com dentes tão afiados e sentiu os dentes da garota cravarem-se em seu pescoço. Esperou por outro clarão, mas tudo havia se tornado escuro. Para sempre. 

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